Doenças Muito Raras
Síndrome de Angelman: estado da investigação é animador
Neste momento, há um sorriso raro que une pais de crianças com síndrome de Angelman e cientistas. Isto porque existe uma crescente evidência de que o tratamento para esta síndrome, não só é possível, como provável. Ainda assim, há que ser cauteloso.
Artigo da responsabilidade da Dra. Sara Silva Santos
A síndrome de Angelman (SA) é uma condição neurogenética caracterizada por atraso no desenvolvimento, deficiência intelectual severa e ausência/dificuldade na linguagem.
Igualmente característicos são os problemas de movimento e equilíbrio (ataxia), distúrbios do sono e crises convulsivas acompanhadas por anomalias da atividade elétrica cerebral, evidentes na leitura do eletroencefalograma (EEG). A SA atinge similarmente homens e mulheres e a esperança de vida destes pacientes não é afetada.
De forma geral, a gestação de uma criança portadora da síndrome é tida como normal e os exames pré-natais genéricos não apresentam irregularidades. De igual modo, o parto não ostenta nenhuma dificuldade específica e a inexistência de características físicas aquando do nascimento torna difícil a distinção entre um bebé com SA e um saudável.
Contudo, no decorrer dos primeiros 6 meses a 1 ano de vida do período pós-natal, os pais começam a notar um atraso acentuado nos principais marcos da infância. A incapacidade de sentarem-se por si mesmos, darem os primeiros passos e a ausência de linguagem, frequentemente acompanhados pelo surgimento de epilepsia, costumam ser os primeiros sinais de alarme.
O diagnóstico pode ser feito com base nos achados clínicos e nos padrões irregulares do EEG e, subsequentemente, confirmado por meio de testes citogenéticos e moleculares direcionados ao cromossoma 15.
Importância da sensibilização
Em Portugal, foram já diagnosticados mais de 60 pacientes, no entanto, dada a incidência (de 1 em cada 15.000 nascimentos), estima-se que o número real de casos ultrapasse os 500. Esta discrepância é justificada pelo desconhecimento das características desta síndrome por grande parte dos pediatras clínicos, os quais, com frequência, a confundem com outras perturbações, tais como o autismo infantil e a paralisia cerebral.
Tal facto reforça a urgência e a importância da sensibilização da classe médica, bem como da população em geral, para a existência desta síndrome, promovendo uma maior visibilidade e deteção dos sintomas associados.
Explicação genética
A síndrome de Angelman tem como causa a expressão deficiente do gene UBE3A materno. Este gene tem a particularidade de estar sujeito a “imprinting” genómico exclusivamente nos neurónios. Isto significa que, apesar de serem herdadas duas cópias do gene (uma cópia da mãe e outra do pai), nas células neuronais de um indivíduo saudável, apenas a cópia proveniente da mãe é ativada. Assim, num cérebro saudável, o alelo materno é funcional e o paterno encontra-se silenciado por processos epigenéticos. Consequentemente, qualquer anomalia no alelo materno coloca em risco a expressão total do UBE3A nos neurónios.
Este gene codifica a proteína E6AP que funciona quer como uma E3-ligase da família das HECT (homologous to E6AP carboxy terminus), quer como um coativador transcripcional. Por outras palavras, esta proteína é uma peça fulcral na via ubiquitina-proteosoma, mecanismo responsável pela degradação de proteínas dentro das células. Se a degradação de proteínas específicas reconhecidas pelo E6AP for limitada, haverá uma acumulação “tóxica” destas no interior dos neurónios, resultando num comprometimento da atividade neuronal.
Resumindo, a falta da cópia materna do gene UBE3A faz com que não haja proteína E6AP no cérebro. Por sua vez, a carência da proteína irá provocar danos e alterações profundas na comunicação e desenvolvimento neuronal, resultando na síndroma.
A ausência de expressão do UBE3A materno pode ser atribuída a diversas etiologias genéticas, sendo as mais comuns a deleção da região crítica 15q11.2-q13 (60-75% dos casos), mutações pontuais no gene UBE3A (10%), defeitos de imprinting genético (2-5%) e dissomia uniparental (2-5%), onde são herdados dois alelos silenciados do pai.
Tratamento provável no futuro
Apesar de ser considerada uma doença rara, a síndrome de Angelman começou a ter uma maior presença na literatura científica nos últimos três a cinco anos. Em parte, tal fenómeno deve-se ao facto de haver uma crescente evidência de que o tratamento para esta síndrome, não só é possível, como provável. Ao contrário do que se verifica noutras doenças do neurodesenvolvimento, a SA é uma patologia causada pela expressão deficiente de um único gene. Não existe neurodegeneração e a grossa anatomia cerebral dos pacientes encontra-se intacta. Grande parte da sintomatologia deve-se à diminuição da atividade e plasticidade sináptica. Isto significa que, em teoria, bastaria reativar a expressão do gene em falta para melhorar grande parte dos sintomas, senão todos.
Cientistas a nível mundial estudam duas possíveis abordagens terapêuticas: uma passa pelo desenvolvimento de fármacos que atuam downstream, substituindo a função da proteína em falta. A outra estratégia explora a reativação da cópia silenciada do pai (upstream).
O Dr. Ben Distel (AMC, Amesterdão) e Dra. Geeske van Woerden (Erasmus MC, Roterdão) trabalham na primeira abordagem. Colaboram entre si com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre os mecanismos de atuação, as vias moleculares e dos targets da proteína E6AP. Em Israel, o Dr. Hanoch Kaphzan procura formas de inibir a proteína alfa1-NaKA, uma sódio/potássio ATPase, que se encontra aumentada nos cérebros de ratinhos com SA e que controla a excitabilidade dos neurónios.
A segunda estratégia terapêutica baseia-se na aplicação de terapia genética e na concomitante eliminação do longo transcripto antisense não-codificante de RNA (UBE3A-ATS), sinal responsável pelo silenciamento do alelo paterno. Um grupo da Universidade da Carolina do Norte (EUA), liderado pelo Dr. Ben Philpot, reduziu com sucesso a expressão do UBE3A-ATS, que conduziu a ativação do alelo paterno. Esta redução foi conseguida após a administração de inibidores das topoisomerases do tipo I nos ratinhos. Todavia, a falta de especificidade deste composto e os seus efeitos secundários revelam a necessidade de se realizarem mais estudos, antes de se avançar para eventuais ensaios clínicos.
Outra forma de reduzir o UBE3A-ATS é através da aplicação “in vivo” de ASOs (antisense oligonucleotides), que contornariam a questão da falta de especificidade. Investigadores norte-americanos proeminentes na área, como Dr. Arthur Beaudet e Dra. Stormy Chamberlain, trabalham nesta direção. Paralelamente, em Portugal, o investigador Dr. Simão Teixeira da Rocha (IMM, Lisboa) e a sua equipa, vencedores da bolsa atribuída pela Fundação Amélia de Mello na edição de 2015, exploram igualmente esta via, usando como modelo de estudo células de pacientes.
Ataxias hereditárias: uma mensagem de esperança
Poucos já terão ouvido falar das ataxias hereditárias, apesar de serem doenças com efeitos devastadores para quem as sofre. Apesar disso, a mensagem é de esperança.
Artigo da responsabilidade da Drª Cristina Januário, Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar de Coimbra
Ataxia, palavra que deriva do Grego ataxis, significa “sem ordem” ou “descoordenação” e, por si só, não constitui uma doença, mas antes um sintoma. A ataxia caracteriza-se pela perda de coordenação dos movimentos voluntários e pode estar relacionada com uma grande variedade de desordens neurológicas ou, até mesmo, com outros problemas associados: por exemplo, o efeito indesejado de tratamentos medicamentosos.
Mas existe uma outra situação na qual o termo designa uma doença. É o caso das ataxias hereditárias, onde os sintomas se desenvolvem lentamente, durante longos anos, e que são causados por alterações genéticas. Nesse caso, a ataxia é resultado de defeitos genéticos que uma pessoa herda de um dos seus progenitores ou dos dois.
No total, existem mais de 70 tipos diferentes de ataxias hereditárias, que podem ser classificadas segundo a forma como são transmitidas. Falamos em ataxia recessiva quando a doença é transmitida por ambos os progenitores, os quais têm uma cópia do gene mutado. Nas situações em que o defeito genético pode ser transmitido quando apenas um dos progenitores possui uma cópia do gene mutado, estamos perante uma ataxia dominante.
SINTOMAS COMUNS
Em ambos os casos, os primeiros sintomas são habitualmente a perda progressiva de coordenação e equilíbrio na marcha, seguidos de descoordenação nos movimentos finos das mãos. Andar torna-se cada vez mais difícil. Os doentes, para se equilibrarem quando estão de pé, afastam os pés, de forma a aumentar a base de sustentação e compensar a perda de equilíbrio.
Em estados mais avançados, os doentes podem necessitar de recorrer a um andarilho ou até mesmo a uma cadeira de rodas. A própria fala pode ser afetada, com o discurso a tornar-se cada vez mais arrastado, lento, pouco claro, com dificuldade na articulação das palavras (disartria) e podem também surgir perturbações em engolir (disfagia).
Outros sintomas podem ocorrer, como os movimentos oculares tornarem-se mais lentos, limitados e surgirem tremores em várias partes do corpo, nomeadamente nas mãos, quando se tenta fazer uso das mesmas.
UM MILHAR DE PORTUGUESES
Em Portugal, de acordo com os dados epidemiológicos mais recentes, estima-se que as ataxias hereditárias atinjam cerca de um milhar de portugueses. Entre as ataxias recessivas, a ataxia de Friedreich é a mais frequente. Além dos sintomas gerais das ataxias, apresenta outros sintomas, como deformidade dos pés, deformações e curvaturas anormais da coluna vertebral para um lado (escoliose) ou para a frente (cifose). Pode também causar dificuldades respiratórias progressivas, que são notórias na perda de volume da voz e, dado que este tipo de ataxia pode afetar as células do pâncreas, a diabetes é outro dos sintomas. É também comum o espessamento do músculo cardíaco (cardiomiopatia hipertrófica), que pode agravar as dificuldades respiratórias já existentes e causar palpitações.
Do lado das ataxias dominantes, a ataxia SCA3, mais conhecida como doença de Machado-Joseph, é a que apresenta maior prevalência. Curiosamente, o nome desta doença deve-se a dois açorianos, Guilherme Machado e António Jacinto Bastiana, que adotou o nome de Antone Joseph. Ambos terão emigrado para os Estados Unidos, daí a considerável incidência da doença entre norte-americanos de origem portuguesa, particularmente na Nova Inglaterra e na Califórnia, assim como em certas regiões do Canadá e do Brasil.
Além dos sintomas comuns a todas as ataxias, a doença de Machado-Joseph inclui diplopia (visão dupla), aparência de olhos parados por retração palpebral, com pestanejo pobre, espasticidade dos membros inferiores, atrofias musculares e cãibras noturnas.
IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO
Por se tratar de uma doença hereditária, o conhecimento de casos de doenças neurológicas na família é fundamental para o diagnóstico. De acordo com essas informações, a história clínica do paciente e os seus sintomas, o médico poderá solicitar exames que ajudem a diagnosticar a doença, o que inclui a realização de testes genéticos. Mesmo não havendo história prévia na família, a consulta de genética constitui um importante passo, não só para o diagnóstico, mas também para a prevenção, pois permite às pessoas afetadas conhecer o risco que apresentam de transmitir a ataxia aos seus descendentes.
Quando uma pessoa na família tem ou é portadora de uma doença recessiva ou dominante, é fundamental discutir isso com os restantes familiares, uma vez que essa informação pode ser útil para ajudar ao diagnóstico de outros elementos da família. No entanto, sabemos que muitas pessoas preferem não saber se possuem ou não o gene responsável pela doença, por não existir ainda uma cura. Seria importante que as pessoas com casos na família tomassem a decisão de fazer este teste, para termos uma real noção da dimensão deste problema e para podermos enfrentá-lo de forma mais eficaz.
AINDA SEM CURA
Nos dias que correm, não conhecemos ainda a chave para a cura das ataxias hereditárias e, por esse motivo, o tratamento incide essencialmente no alívio dos sintomas e em evitar que o problema se agrave.
O tratamento pode incluir fisioterapia, para ajudar o doente a manter a força muscular e melhorar a sua mobilidade; mas também terapia ocupacional, para ajudá-lo na realização das tarefas diárias, como alimentar-se ou vestir-se.
Como a doença afeta também a linguagem oral, a terapia da fala é aconselhável em alguns casos. A medicação para alguns dos sintomas pode melhorar significativamente a qualidade de vida dos doentes.
No sentido de encontrar uma solução para as ataxias hereditárias, muitos institutos de investigação têm feito trabalho de pesquisa neste campo. É o caso do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, em associação com o Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), que têm dado um importante contributo, permitindo avanços importantes para a compreensão desta doença.
PROMOVER O CONHECIMENTO
No que toca às ataxias hereditárias, confrontamo-nos com uma grande dificuldade: a falta de conhecimento sobre as doenças. Poucos terão ouvido falar das ataxias, apesar de serem doenças com efeitos devastadores para quem as sofre. Muitas vezes, as próprias entidades de saúde desconhecem as ataxias hereditárias, o que acaba por ser compreensível, uma vez que estamos perante doenças raras. Foi, precisamente, com o intuito de melhorar a informação sobre a doença que se realizou, no passado mês de setembro, o Encontro Ibérico de Ataxias Hereditárias, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Durante a iniciativa, que teve como mote “partilhar para conhecer melhor”, foram abordados alguns temas importantes, como o estado da investigação e as terapias existentes para atrasar a progressão da doença, entre outros aspetos relevantes.
Neste encontro, promovido pela APAHE – Associação Portuguesa de Ataxias Hereditárias, ficou também demonstrada a importância da prática de exercício físico para reduzir a perda de coordenação motora e a necessidade de mais apoio psicológico no acompanhamento do doente e dos seus familiares, que nem sempre reagem bem perante a possibilidade de serem portadores do gene responsável pela doença.
Mas, acima de tudo, o que resultou deste encontro foi uma mensagem de esperança. Acreditamos que, graças aos avanços na investigação, os doentes com ataxias hereditárias possam usufruir de uma vida com cada vez mais qualidade.